quarta-feira, 30 de junho de 2010

A notícia


Clara parava todos os dias para olhar as ruas pela janela. Acordava e, ainda sonolenta, tomava um xícara de café observando aquelas pessoas, imaginando o que estaria por trás daquela pressa e das feições preocupadas. Quem era de verdade cada uma delas?

Professora de piano, já com seus 32 anos e filha única, Clara viva sozinha naquele apartamento desde a morte dos pais num acidente de carro há 10 anos atrás. A pouca família que tinha morava muito longe, quase não mantinham contato, o máximo que faziam era mandar um cartão de "Feliz Natal" ou dar um telefonema no aniversário. Também não tinha amigos. As lembranças dos dias leves e felizes da faculdade, repletos de festas e pessoas em casa o tempo todo pareciam agora apenas um borrão, faziam parte de uma mulher e de uma vida totalmente diferentes, talvez num outro universo, talvez nem mesmo tivesse existido. Ela tentava apagar da sua memória o ponto em que tudo mudou, o momento que quebrou todos os seus sentidos, que a fez se afastar de tudo o que ela foi, de tudo que seria. Mas a memória é traiçoeira, e as lembranças não desapareciam como ela desejavam, faziam sua visita de quando em quando, trazendo com elas uma dor que dilacerava seu coração e o desejo de também ter ido embora.

Tudo acontecera há seis anos atrás, ela tinha se formado há pouco tempo, fora a aluna mais brilhante da história da Universidade, já tinha vários convites para contratos e turnês. Não havia uma pessoa que não se emocionasse ao ouvir a melodia que seus dedos criavam ao tocar o piano. Parecia mesmo mágica. Ninguém diria que alguma coisa pudesse dar errado pra ela, sua vida estava toda traçada, seu futuro era promissor, não havia espaço pra nada além de muita felicidade. Pra completar tudo que ela sonhara pra si mesma, estava às vesperas de seu casamento, e por mais adolescente que pudesse parecer, ele era o amor de sua vida. Tiago era seu parceiro ideal, os dois esbanjavam amor, estavam juntos desde o começo da faculdade e desde então almejavam juntar definitivamente seus caminhos.

Clara fizera questão de continuar morando no apartamento que os pais deixaram, tinha espaço suficiente e já era mobiliado. Além disso muito da história dos dois tinha sido construída dentro daqueles cômodos, testemunhada por aquelas paredes, não existia um lugar mais apropriado para começarem o resto das vidas. Tiago achava justo, e gostava da ideia, já que era muito complicado encontrar um bom lugar naquela vizinhança. Fizeram umas mudanças pra dar uma cara mais de casados, decoraram de um jeito que agradasse aos dois, tudo estava pronto para a próxima semana. A cerimônia seria linda, pequena e ao ar livre, teriam a lua de mel em uma desconhecida e gelada cidadezinha. Nada muito chamativo ou glamouroso, exatamente como eles sempre imaginaram.

Na véspera do grande dia, Clara decidiu que queria fazer uma surpresa, mudar um pouco as tradições. Ela chegaria primeiro, num carro simples, e ele chegaria depois na limusine de noiva. Tiago não queria aceitar a ideia a princípio, queria que ela tivesse tudo que deveria ter, todo o conforto, todo o brilho matrimonial. Mas se ela fosse como todas as outras, eles não teriam se apaixonado. Ela sempre fora diferente, queria fazer suas próprias regras e tradições, queria inovar, fazer do seu jeito. E foi por isso que ele aceitou a troca de carros. Foi por isso que ela nunca se perdoou.

Ela esperava por ele, simplesmente deslumbrante vestida de branco, perdida em seu próprio conto de fadas. Ele estava demorando, mas deveria ser pra dar mais graça ao teatrinho que montaram, afinal, a noiva sempre se atrasa. A casinha de cristal e sonhos que a embalava foi retirada de uma vez quando aquele moço chegou desesperado, gritando alarmadamente, criando um alvoroço gigantesco. O carro estava com um problema, acontecera um acidente, Tiago morreu na hora, sem nenhuma chance. Clara não podia acreditar, e tentava a todo momento acordar de um pesadelo, ver que aquilo não estava acontecendo. Aqueles dias foram como um filme de terror, e ao contrário de muita gente que não consegue se lembrar de nada, tudo ficou muito gravado em sua mente, cada detalhe, cada segundo. O carro destruído, o corpo ensaguentado do amado, as flores no velório, a chuva fina e insistente no enterro, os dias sem comer, ouvindo sempre a mesma música, agarrada à velha camisa que ele usava pra dormir...

Desde aquela época, Clara desistiu de tudo. Saía minimamente de casa, falava só o estritamente necessário. Os recados na secretária eletrônica começaram a diminuir, os amigos começaram a desistir de tentar tirá-la daquele estado, até ela ficar completamente sozinha. Era para ela ter morrido e não ele, e por isso ela jamais se perdoaria, jamais voltaria a viver como viveu, não fazia mais sentido.

Ela continuava olhando pela janela, segurando a sua xícara de café, tentando buscar naquela multidão alguma resposta, alguma explicação pra uma dúvida que nem ela sabia formular. Tudo que ela via, porém, eram pessoas apressadas, desperdiçando, talvez, a última chance de viver um pouquinho mais de seu sonho.

Yara Lopes

5 comentários:

  1. Parabéns Yara vc escreve muito bem!
    E que história triste!

    Já pensou em escrever um livro?

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  2. Essa é minha criança. =) Sabe, né?! Ensinei tudo à ela. ;]

    Baaby, ótimo texto.

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  3. Obrigada, vocês são fofos e exagerados

    =D

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  4. Muito Bela a História Karol, mas Não pe triste demais??

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  5. É essa a intenção. Já tem muita história feliz por aí, haha

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